domingo, 25 de janeiro de 2009

problemas da vista

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"— O senhor não ama com ternura o rei dos búlgaros?
— De modo algum, pois nunca o vi."

(Cândido, do Voltaire)
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"É um homem mau, que vem procurar as crianças que não querem ir pra cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam ensangüentados, e os apanha, os enfia numa bolsa, e os carrega para a lua para alimentar seus netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não são boazinhas."

(Hoffmann; O Homem da Areia)
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"Os olhos são as únicas mãos que vão ficando a alguns de nós."

(conto do Cortázar que não lembro o nome)
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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

le cigare ou les femmes?

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O filme que em menos de cinco minutos reúne o (fabuloso) "spinach tennis", uma tonelada de Charlie Parker e a cruel escolha entre o cigarro e as mulheres. (O sopro no coração, Louis Malle, 1971).

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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

waterloo, mas com bexigas

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Na edição deste mês da piauí escrevi um texto sobre o método de preparação de atores da Fátima Toledo. Minha idéia era tentar fazer a ponte entre o trabalho da Fátima e uma espécie de "vontade de verdade" (que é a nossa catapora favorita, basta pensar no sucesso dos reality shows, no atual prestígio dos documentários ou num tipo de realismo vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras). Nesse contexto, acho que o método da Fátima ganha força (não à toa, ela trabalhou na grande maioria dos filmes recentes brasileiros): muitos diretores não querem atores que "atuem", mas sim que "vivam" as cenas, o que contribuiria para um certo "efeito de real". A reportagem tenta mostrar os caminhos que a Fátima Toledo toma para criar, a partir do trabalho com os atores, essa "impressão de autenticidade" e como ela vincula isso a uma idéia de "verdade".

Aí vai.

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Como não ser ator

Na escola de atores de Fátima Toledo, a preparadora de elenco de nove entre cada dez filmes nacionais, é proibido atuar

O curso dura cinco dias, de segunda a sexta, no período da manhã. O aquecimento, baseado na chamada bioenergética, são exercícios de meditação, vitalidade, alongamento e cinco minutos de “cachorrinho”, todos os dias. O “cachorrinho” consiste em ficar de quatro, a língua para fora, respirando, respirando. Um pedaço de guardanapo de papel é posicionado no chão, estrategicamente, para receber as estalactites de saliva. O passo seguinte são quinze minutos de kundalini, “meditação para liberar a energia primal, que está aprisionada”. De olhos vendados, pés ancorados no piso de ardósia, joelhos flexionados, vamos mexendo a pélvis em um vai-e-vem contínuo, para frente, para trás, guiado por sons de cítara, frenético, quase um transe. “Às vezes a kundalini dá enjôo”, diz Fátima Toledo, “ou a pessoa fica excitada. As mulheres podem menstruar antes do tempo. Mas precisamos disso pra destravar o sensorial, relaxar, soltar a barriga, os lábios, ficar inteiro. Porque chegamos aqui aos pedaços.”

Fátima Toledo, a preparadora de elenco que orientou uma centena de atores e não-atores em 35 filmes, entre eles Pixote, Cidade de Deus e Tropa de elite, acende um cigarro. Durante os cinco dias é assim. Ela aparece no fim do aquecimento (conduzido por um assistente), quando os colchonetes azuis estão sendo empilhados, e acende um cigarro. A escola fica em um sobrado no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Fátima chega, é séria, tem cerca de 1,60 m de altura, o cabelo curto e toma café, usa uma calça preta larga, blusa cinza, havaiana dourada e acende outro cigarro. O primeiro dia do curso é um papo, uma introdução ao método.

“Para o tipo de trabalho que vamos fazer, o artifício da atuação é um mal.” Fátima Toledo tem a voz rouca. “Neste método, não existe a idéia de personagem. Aqui, o que vale é a verdade de cada um. No cinema verdadeiro, a pessoa não deve pensar em criar personagem, tem que viver realmente a situação. São situações fictícias, não somos nós, mas também não é um personagem, porque estamos ali, vivendo aquilo tudo. Depois do ‘corta’, acabou: o ator volta à sua vida, mas naquele momento é a própria pessoa quem está realmente vivendo aquilo.”

Entre os treze alunos, que ouvem tudo sem piscar, tossir nem pegar soluço, estão Simone e Vilma, atrizes que vieram do Rio para o curso; Juliana, cabeleireira; Camila, administradora; Renato, que estudou Relações Internacionais; Itapoã, que se auto-intitula “mecânico corporal”; Adriano e Tatiana, recém-formados em uma escola de teatro; e Angelita, que está ali “para se descobrir”. Fátima Toledo, que pede desculpas, diz que vai acender um cigarro, tem 55 anos e dois cachorros. É alagoana, solteira, foi casada três vezes. Não tem filhos. Chegou a São Paulo aos catorze anos. Antes, por causa da profissão do pai, engenheiro civil do extinto departamento nacional de água e esgoto, morou em Salvador, Brasília, Natal e Fortaleza. Estudou comunicação visual no Mackenzie e freqüentou as aulas do ator e professor russo de teatro Eugênio Kusnet. Sua história no cinema começa em 1981, com Pixote, do diretor Hector Babenco. Na época, tinha 24 anos, queria ser atriz e dava aulas de teatro na Febem.

Para fazer Pixote, Babenco foi algumas vezes à Fundação para o Bem-Estar do Menor, em busca de material para o filme. Em uma das visitas, passando pela porta entreaberta de uma sala, viu uma moça. Uma moça e um grupo de meninos. Uma moça e um grupo de meninos fortes e mal-encarados. “A Fátima fazia um trabalho de terapia ocupacional com meninos-problema da Febem”, recorda Babenco, na sala de sua produtora. “Percebi que ela poderia me ajudar com as crianças do filme.”

De início, Fátima Toledo estudou Stanislavski, procurou no método do ator e diretor russo exercícios para dar aos meninos. A coisa não ia bem. "Era difícil para as crianças, recrutadas depois de uma série de testes em bairros da periferia de São Paulo, se habituarem às idéias de personagem e roteiro", diz. Os prazos começavam a apertar. Fátima decidiu que leriam O pequeno príncipe. Depois, foram ao zoológico, cada um escolheu um bicho, ficaram um mês tentando entender como rasteja a cobra, se o hipopótamo no banho mexe a orelha, os movimentos e o comportamento dos animais. “Ali eu resolvi que não tinha roteiro, ali eu resolvi que não tinha personagem”, conta. A solução foi fazer com que os meninos "fossem eles mesmos, que agissem e falassem da única forma que sabiam e podiam". “Aprendemos que a fala deles muitas vezes é mais completa do que a criada por qualquer roteirista.” O método começava a surgir, não a partir de uma teoria, mas de uma necessidade; era uma solução, prática, para se driblar as dificuldades que se apresentavam.

Para o papel-título, o engraxate Fernando Ramos da Silva foi o escolhido, tinha 12 anos quando fez Pixote. O filme foi indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro em 1982, e alçou o garoto ao estrelato, incluindo um contrato assinado com a Rede Globo. Fernando mudou-se com a família para o Rio. Mas tinha dificuldades para decorar os textos (mal sabia ler), não se adaptou à nova rotina. Voltou para Diadema, envolveu-se em assaltos e aos dezenove anos, em 1987, foi morto por policiais, dentro de casa. “Durante muito tempo me senti responsável pelo Fernando”, diz Fátima Toledo. “A imprensa não o chamava de Fernando, mas de Pixote; pessoas batiam nele, diziam que ele não era o Fernando, mas sim o Pixote. Ele me ligava chorando. Depois, na Globo, alguns atores olhavam torto pra ele, maltratavam.” Fátima conta que com o tempo entendeu que “o destino dele seria o mesmo com ou sem o Pixote”, mas que o filme fez com que Fernando “cumprisse sua missão com um pouco mais de poesia”. A experiência deixou uma lição: “agora, quando estamos fazendo um filme, está claro que não estamos formando atores.”

O curso começa para valer na terça-feira. Fátima acende um cigarro. Inspirada em exercícios de Stella Adler (a única atriz americana treinada pessoalmente por Stanislavski e orientadora de Marlon Brando no início da carreira), a fase inicial é o que Fátima chama de “quem é você”. Camila é uma das primeiras. Levanta e, de olhos fechados, deve completar as frases “eu sou...” e “eu estou...”. Falar sem parar, o que vier à cabeça. Camila respira fundo. “Eu sou... insegura. Inteligente, corajosa. Alta, chata, impaciente. Verdadeira, curiosa, teimosa, apressada, carinhosa. Eu estou... no lugar que eu queria estar”, suspira, pára, começa a chorar, “eu passei por muitas coisas até ser o que eu queria ser!” O choro corta a fala, Fátima Toledo coloca a mão sobre o peito de Camila, diz baixinho: “preciso acreditar mais em mim, preciso ser mais forte”.

Um a um, nós vamos à frente, Fátima Toledo dá novas instruções: “eu amo...”, “eu odeio...”, “eu quero...”. “Paz no mundo, mais arte, educação!”, Vilma grita, no melhor estilo passeata estudantil. Fátima interrompe: “não! Você está mentindo! Essas são coisas impostas, não é verdade, não está em você”. Os alunos se sucedem. “Eu amo... minha mãe, ficar sozinha, ter esperança, ser entendida.” “Eu odeio... rúcula, quando me chamam de psicótico, barata, nhoque, meu pé.” No fim, a mesma mão no peito, a voz baixa, quase um sussurro: “eu preciso ser mais forte, eu preciso me respeitar mais, eu preciso...”. Fátima diz que essa parte do trabalho é uma espécie de diagnóstico. “Vejo se a pessoa é agressiva, medrosa, se sabe pedir, dizer não.” Fátima Toledo conta que “a técnica do método é, antes de mais nada, virar gente”. Esconder-se atrás do personagem é proibido. “O espectador deve enxergar pessoas, não atores. Motivação, subtexto? Não! A cena é um resultado da vivência. O personagem impede que a pessoa viva a situação e descubra o seu próprio depoimento. Stanislavski diz ‘se fosse eu...’; eu digo ‘sou eu’”, enfatiza.

Para ativar os atores, o ator e diretor russo Constantin Stanislavski trabalhava sempre com uma suposição. No livro A preparação do ator, publicado pela primeira vez em 1936, exemplifica: “suponhamos que neste apartamento tenha morado um homem que ficou louco, levaram-no para um hospício. Se ele tivesse fugido e estivesse atrás daquela porta agora, o que é que vocês fariam?”. Para Stanislavski, o “se” atua como uma alavanca que auxilia o ator a “sair do mundo dos fatos, erguendo-o ao reino da imaginação (...) porque a arte é produto da imaginação”. “O segredo do efeito do ‘se’ repousa, antes de tudo, no fato de não empregar o temor ou a força”, escreve. “Pelo contrário, o ‘se’ tranquiliza o ator com sua franqueza e lhe inspira confiança numa situação imaginária.”

Fátima Toledo argumenta que a falha do “se fosse eu” de Stanislavski está na “possibilidade de não ser”. “Há a chance do ator não ser! O ‘eu sou’, por outro lado, desperta o sensorial imediatamente. É real! É como na vida!”, diz, e cita como exemplo a preparação do ator Wagner Moura para o filme Tropa de Elite. “Stanislavski diria ao ator: Se você fosse o capitão Nascimento. Mas isso tiraria a força do personagem”, argumenta. “Hoje em dia não temos mais esta suavidade. As pessoas não estão mais sentindo, ouvindo, não estão vendo. O ‘se’ dá segurança. Quando tiramos o ‘se’, a pessoa toma uma atitude.” Foi o que Fátima Toledo diz ter feito para que Wagner Moura virasse o capitão Nascimento.

Oito alunos estão em pé, são duas filas de quatro. Os da frente, de costas para os de trás, não podem virar. O jogo é: ir ou ficar. Quando a música (meio new age) chegar ao fim, os da frente vão partir, abandonando os de trás. Ou vão permanecer, ficar com o parceiro, que deve se concentrar para não permitir que o companheiro da frente vá embora. Fátima Toledo surge, a voz rouca, anda de um lado para o outro.

Tudo é sério. Durante a aula, Fátima nunca ri. Gesticula: “Quem vai, talvez não volte [pausa dramática]. E se você não for agora, talvez não vá mais. Às vezes as pessoas partem porque a gente deixa, dessa vez, não deixe! [gritando] Ou você olha pra frente e parte, sozinho, ou fica e segue onde está. Os encontros não devem ser salva-vidas! Respeite você, depois ame o outro. Se você não for agora, você não vai nunca mais!” Cinco dos oito participantes choram. Três decidem partir, um fica.

Depois de Pixote, Fátima Toledo ficou dez anos longe do cinema. Foi trabalhar no departamento de marketing do banco Itaú, onde seu tio era gerente. No início dos anos 90, porém, Hector Babenco voltou a cruzar o seu caminho. “Você conhece índio?”, perguntou, com o sotaque argentino. Fátima nunca tinha visto um índio na vida. “Então vai pro Pará”. Era o início de Brincando nos campos do Senhor. Fátima ficou dois meses vivendo em uma aldeia. O trabalho não diferia muito do que havia feito em Pixote (exceto as picadas de mosquito). Saem as crianças, entram os índios. O desafio era parecido: fazer com que alguém que jamais houvesse pisado em um set, pudesse representar. Pouco depois, em 1991, foi convidada para fazer Medicine man (no Brasil, O curandeiro da selva), dirigido por John McTiernan, com Sean Connery e Lorraine Bracco como protagonistas e José Wilker em um papel secundário. Devia, novamente, preparar um grupo de índios, fazê-los atuar. “Não tinha personagem, eram os índios mesmo”, conta.

Em Brincando nos campos do Senhor e Medicine man, Fátima Toledo entendeu que estava “levantando cenas”. Todo o trabalho com os índios era feito na aldeia, mas Fátima não sabia se conseguiria o mesmo efeito quando fosse para valer, na frente do diretor. Então, ensaiava as cenas com os índios, e neste processo percebeu que nasciam situações e intenções que não estavam no roteiro. Babenco e McTiernan deram espaço e Fátima começou a realizar o que hoje desempenha com regularidade, o “levantamento de cenas”. “O trabalho do coach norte-americano é bem diferente”, ressalta Fátima. Nos EUA, muitos atores têm o seu próprio coach, ou então o preparador é contratado para ajudar o ator a superar problemas como montar a cavalo, aprender um sotaque ou plantar bananeira. “Preparação como a da Fátima é uma invenção brasileira”, afirma Christian Duuvoort, que também prepara atores (tem um método chamado “o ator imaginário”) e foi responsável por treinar parte do elenco de Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles.

“Hoje, tenho espaço pra discutir aspectos do roteiro, os meus atores podem criar cenas que não estão no roteiro”, diz Fátima. “O Brasil me deu essa possibilidade. Lá fora, é difícil o preparador ir para o set.”

Fátima Toledo conta que no roteiro original de Casa de Alice, do diretor Chico Teixeira, havia uma cena em que uma personagem se refugia na área de serviço e prepara um veneno para dar à adolescente que está de caso com o seu marido. Depois, no que seria uma reviravolta interna, desiste de dar o veneno. “Pra quê?”, Fátima questiona. “Vai ser um caminho complicado. Mostrar alguém que pensou em matar e desistiu. Por que tudo isso? Por que essa pessoa não explode de uma vez e não coloca toda sua dor em cima da outra personagem?” Teixeira concordou em eliminar a cena do envenenamento. “Não é que estivesse mal-escrita, é que levantando a gente vê que não funciona”, diz Fátima.

Ela fala que não tem condições de levantar todas as cenas de um filme. Por isso, os diretores entregam a ela uma lista das que consideram as mais importantes. Muitas são levantadas na própria escola, na Vila Mariana. Quando estão prontas, Fátima Toledo chama o diretor. Ele faz ajustes, corrige, dá o tom, muda a marcação. Antes de rodar, ela vai ao set com o diretor e os atores, ainda sem a câmera, e repassam as cenas.

O primeiro cigarro do dia tem um gosto especial. A caixa de Free está no batente, Fátima Toledo se apóia na janela e bate as cinzas. Olha para os alunos. O curso, que custa 1200 reais, simula as etapas do trabalho de Fátima em um filme. É uma miniatura do método. Começa com o “quem é você”; passa por exercícios que trabalham idéias como a partida, o amor, o abandono, o ódio, a dor (sentimentos e situações arquetípicos, segundo Fátima); e culmina no “levantamento de cenas”. Estamos na quarta-feira e Fátima avisa que precisa de um pouco mais de “quem é você”. Para conhecer melhor a turma. Diz não estar satisfeita. As pessoas estão muito defensivas, precisam mostrar mais verdade!

Um grupo de alunos vai à frente e Fátima distribui bexigas. Cada aluno recebe três bexigas. Deve encher cada uma delas com um sonho, algo importante, que se queira muito, realmente sério. É preciso cuidar desse sonho, não deixar que ele escape. É preciso mantê-lo por perto e nas mãos. Você tem lutado por ele? Alguns abraçam as bexigas, acariciam; outros equilibram na ponta dos dedos; Juliana faz embaixadinha. A bexiga de Camila estoura. Ela começa a chorar.

Um outro grupo de alunos observa, espera para atacar.

O exército recebeu instruções secretas para, quando for dado o sinal, correr e estourar os sonhos dos colegas. Os soldados se preparam, alongam, estalam os dedos, o pescoço. Angelita, vaidosa, pergunta: “meu nariz está sujo?”. Olham fixamente para o flanco inimigo, onde se ninam bexigas, sonhos crescem e tudo é colorido e mágico. Fátima Toledo abre espaço para o pelotão e grita: “Vai!”. O que se vê então é a maior batalha desde Waterloo, só que com bexigas coloridas. Angelita é implacável, não deixa sobrar nada, esmaga os sonhos verdes, os vermelhos, trucida (com as unhas) os amarelos. Tiros espoucam. A guerra é sangrenta.

Entre os escombros, um farrapo de sonho (laranja) agoniza. Ao fim do ataque, Angelita faz um balanço da ofensiva. “Sobre os sonhos da minha colega”, diz, “eu vi que ela estava ali, com todo cuidado, com o balãozinho dela, eu fui assim e tipo cheguei na vida dela e pá, estourei. Ela olhou pra mim e não teve ação, senti no olhar, consegui enxergar dentro dela, lá no fundo, que ela teve raiva, mas não conseguiu pôr pra fora, sabe.” Comandante Fátima é taxativa: “Você não ajudou!”. Angelita abaixa a cabeça, estica entre os dedos um pedaço de sonho, dos azuis, e suspira: “Mas eu tentei...” Fátima Toledo busca o que chama de “verdade”: “Às vezes, a pessoa não está habituada a reagir. Na vida, nos submetemos a muitas coisas. Você falava [fazendo voz de idiota]: ‘eu destruí seu sonho, eu destruí seu sonho’, e ria. O correto seria [gritando]: ‘eu destruí seu sonho, caralho! Reage! Pelamordedeus bate em mim! Faz alguma coisa comigo, porra! Você viu o que eu fiz com você? Quer que eu faça de novo?’ Você tinha que ter ajudado a pessoa a reagir.”

Angelita encolhe os ombros, diz: “É que, sabe, eu tenho essa coisa de sorrir, eu sorrio muito, mesmo quando estou sentindo raiva, eu sorrio”.

Em 2002, com Cidade de Deus, Fátima Toledo ganhou fama. Para o diretor Fernando Meirelles, não há diferença entre o trabalho de Fátima Toledo e o de um coach tradicional. “Os coachs trabalham sempre em áreas específicas”, diz. “O tom da interpretação, o ritmo das cenas e tudo mais é decidido pelo diretor. Sempre. Lá fora e aqui.” Em O jardineiro fiel, Meirelles decidiu não usar um preparador porque, diz ele, se tratava de um elenco experiente. Ensaio sobre a cegueira teve uma preparação para todos os extras que interpretariam cegos. “O elenco principal também participou, mas eram exercícios para ajudá-los a se habituarem a fazer movimentos sem enxergar, não envolvia cenas do filme”, conta.

“Em Cidade de Deus, Fátima trabalhou por três semanas com os personagens principais, sobretudo nas cenas dramáticas”, lembra Meirelles. “Ela veio para arrancar de cada um deles o máximo de emoção possível, sempre com aquela intensidade típica da Fátima.”

Na sala de aula, Vilma toma um tapa na cara. Juliano segura Vilma pelo rosto e diz “sim”, ela responde “não”. “Sim”, “não”, “sim”. Juliano dá outro tapa. Vilma insiste, “não”. “Sim!”. Vilma chora, “nããão!”, soluça. Fátima anda ao redor, “você foi ferida, usa essa força.” Vilma tenta escapar “não!”, Juliano aperta o rosto de Vilma, “siiim!”.

Cada diretor tem uma forma de se relacionar com o tipo de preparação que Fátima Toledo propõe. Para cineastas como Sérgio Machado e José Padilha ela é mais do que um “coach tradicional”. “Karim [Ainouz], eu e o Walter [Salles] estamos muito interessados neste tipo de atuação”, comenta Machado. “Nunca suportei ver uma cena em que percebo que os atores estão atuando. Tenho ojeriza a isso, faz com que eu me lembre que estou vendo um filme e não vivendo uma experiência.” Em Tropa de Elite, de José Padilha, muitas das cenas dramáticas nasceram da interação de Fátima com os atores. Nos extras do DVD do filme, Padilha diz: “A Fátima é uma pessoa intuitiva, talvez haja uma técnica profunda por trás disso. Eu não sei porque eu não entendo.”

Machado conta que quando fez Cidade Baixa percebeu que Fátima Toledo estava lá para “ajudá-lo com o filme que queria fazer”. “Não se trata de uma terceirização do trabalho do diretor”, diz. “Ela me ajudou a chegar onde eu queria.” O cineasta lembra da experiência em Cidade Baixa. “Foi marcante. A intensidade da Fátima contagiou todo mundo”, recorda. “Quando a Fátima queria fragilizar a Alice [Braga], fazia um trabalho de pressão, colocava uma pessoa deitada em cima dela. Eu tinha na equipe um maquinista que era lutador de jiu-jitsu. Ele ajudava, ficava em cima da Alice, que começava a chorar de um jeito... A Alice ali, com as roupas pequenas da personagem, tentava se mexer, o maquinista a imobilizava, ela chorava, se fragilizava. Tudo no maior respeito. Aquilo era muito comovente. A Alice estava ali chorando, se entregando, isso fez com que toda a equipe também se entregasse. É por isso que no Cidade Baixa o espectador vê uma paixão tão grande.”

Fátima Toledo diz que vem reduzindo suas idas ao set porque, acredita, “este é o momento da direção”. Diz que os diretores quando a procuram buscam “o prazer de dirigir, de pegar atores que estão livres, sem atuar, soltos e entregues, prontos para serem usados pelo diretor.”

Bruno Barreto, no entanto, interrompeu um trabalho com Fátima (no recém-lançado Última parada 174, candidato brasileiro a uma das vagas da disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro) por acreditar que seu método acaba diminuindo os espaços de criação do diretor. “O maior prazer que tenho ao filmar é dirigir o ator. Ele tinha que vir preparado, mas não pronto. Com a Fátima, ele vem quase pronto. O diretor pode intervir muito pouco”, afirma.

Por telefone, Barreto diz que para ele os ensaios com os atores são muito importantes. “É quando a dramaturgia começa a sair do papel e ganhar vida. Respeito o trabalho da Fátima, mas levantar cenas é um momento crucial. Isso deve ser feito pelo diretor, não por outra pessoa”, comenta. “Acho que o modo como se conduz os atores imprime uma marca nos filmes. Bergman, Antonioni, Nelson Pereira. Os atores têm funções distintas para cada um destes cineastas.” Na opinião de Barreto, “não é preciso transformar o ator em um farrapo humano para que ele renda bem”. “Nem sempre a verdade é verossímil. Tem ator que chora facilmente, mas isso não significa que vamos ter uma boa cena”, fala, ecoando o que Stanislavski escreve em A preparação do ator: “nem toda espécie de verdade pode transferir-se ao palco”, anota o diretor russo. “Há atores que se impõe uma obediência tão severa à verdade que, muitas vezes, sem o saberem, levam isso a tais extremos que se tornam falsos. O ator não deve exagerar a preferência pela verdade e a aversão pelas mentiras, porque isso o leva a exagerar sua atuação da verdade, apenas pela verdade, e isto, por si só, já é a pior das mentiras. O ator deve ser frio, imparcial. Precisamos da verdade até o ponto em que podemos acreditar nela.”

Durante as entrevistas de seleção de pessoas para viverem os personagens de Última parada 174, Barreto diz ter acontecido algo que o incomodou. “Nos vídeos de seleção, os candidatos se apresentavam, um a um. O assistente da Fátima, fora do quadro, perguntava o nome, a idade, porque o candidato estava ali etc. Num dos vídeos, lá pelas tantas, a voz dizia: ‘na verdade, aqui é a polícia, sabemos que você está envolvido com drogas’. A pessoa tomava um susto. Tremia, apavorada. Então, a voz dizia que era mentira, que aquilo fazia parte do teste. Isso me incomodou, é brincar um pouco demais com a cabeça das pessoas”, fala.

Fátima Toledo nega o episódio. “Essa acusação é de uma irresponsabilidade cruel”, diz. “Quero que ele prove, mostre essa fita.”

Para Hector Babenco, “Fátima impõe um modelo de atuação que é marca dela e no qual o diretor, vampiristicamente, absorve os resultados”. “Ela injeta auto-confiança nos não-atores. No Pixote, isso foi importante para que os meninos se relacionassem de igual para igual com a gente.”

Nos filmes que dirige, Babenco diz achar interessante que alguém faça um trabalho anterior, de relaxamento, para “despir os atores da casca de ator”. “Mas não quero ninguém ensaiando o meu ator”, diz. “Vou moldando o filme de acordo com o que o ator vai me entregando, por isso este momento de ficar junto do ator é fundamental.” Babenco acredita que no cinema nacional, hoje, o preparador de elenco virou uma função tão corriqueira quanto a de um diretor de arte, maquiador, continuísta. “Os diretores não conseguem mais conceber um filme sem essa função”, comenta. “Em O passado, fiquei mais de dois meses trabalhando com o Gael [García Bernal]. As atrizes foram escolhidas a partir de ensaios com ele. Não cresci brincando com uma câmera de vídeo, comecei trabalhando em teatro, minha formação vem de trabalhar com os atores.”

Carlos Reichenbach, que trabalhou com Fátima Toledo em Dois córregos e Garotas do ABC, diz que o preparador se torna indispensável quando o diretor opta por trabalhar com não-atores. “O coach estimula o essencial em qualquer ator estreiante: concentração e disciplina.” Mas fala que nem sempre “os atores profissionais gostam de se submeter ao treinamento do preparador”. Exemplo disso é o “manifesto” que o ator Pedro Cardoso divulgou no último Festival de Cinema do Rio. Nele, Cardoso criticava uma certa perda de autonomia do ator e questionava a opção de diretores em trabalhar com preparadores de elenco. Dizia que “o haver agora no mercado desses amestradores de atores faz parte da desautorização do ator como autor do seu próprio trabalho”. “Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é o ator que faz?!”, ironizou Cardoso.

Sergio Machado, por telefone, enfatiza que Karim Ainouz e ele não têm nenhum interesse em trabalhar com atores que a princípio rejeitam o método de Fátima Toledo. “Tem ator que chega e fala: ‘se for com a Fátima, eu não faço’. Então eu digo: ‘até mais, amigo’. Como se a Fátima tivesse rompido algum contrato social, tivesse feito algo eticamente muito irresponsável”, defende Karim Ainouz. “A Fátima nos dá atores à flor da pele. Quando se está à flor da pele, é mais fácil ficar alegre, ficar triste. A pessoa fica disponível, grita e chora mais facilmente.” Ainouz tem dúvidas, no entanto, se o método funcionaria em uma comédia. “Não acho que serve para isso. Mas tenho curiosidade em saber como a Fernanda Montenegro trabalharia com a Fátima.”

O ator e diretor de teatro Mario Bortolotto se diz completamente contra o método. “Ela pega não-ator, faz os caras repetirem o que fazem na vida real, parece que é trabalho de ator, mas não é”, fala. “Quando pega ator de verdade, faz os caras sofrerem pra render uma coisa que eles poderiam render só com o trabalho deles. Não tenho nada contra não-ator, o que eu não quero é submeter o cara a uma tortura psicológica pra conseguir o resultado. Vejo os atores reclamando muito, mas não fazem isso publicamente porque ela virou uma grife. É uma pessoa forte no cinema nacional, então ninguém fala mal, senão não vai ser chamado pro próximo filme.” Bortolotto diz que o que mais gosta quando está atuando é “brincar de ser e não ser de verdade”. “A Fátima Toledo faz você acreditar que está vivendo as situações pra valer. Ela tira toda a graça da brincadeira”, diz. “Sem falar que ela trabalha muito a coisa do improviso, né? O roteiro é praticamente ignorado em prol de uma suposta espontaneidade do tipo ‘falem com suas próprias palavras’.”

Para o diretor Antunes Filho, do Centro de Pesquisas Teatrais, os atores dos filmes nacionais “fazem bem a ação externa”. “Mas e a ação interna?”, questiona. “Posso induzir você a chorar, mas isso não quer dizer que você seja ator. Estou utilizando você de forma domesticada." Antunes acredita que o cinema nacional, hoje, é um cinema de denúncia, "mas uma denúncia estática”. “No fundo do olho de um personagem submetido à miséria, não consigo ver esperança", argumenta. "É só relato, manchete. A tristeza é estereotipada, chapada. Não é só dizer que o homem está esmagado, fodido. É preciso ver no homem alguma esperança, ver que o homem está predisposto a sorrir.”

No mesmo ano em que Cidade de Deus chegou aos cinemas, em 2002, foi lançado Desmundo, de Alain Fresnot. Nele, Fátima Toledo preparou a atriz Simone Spoladore. Em um dos principais exercícios propostos por Fátima, Simone tinha que ficar dentro de um quadrado de fita crepe, vendada, durante horas. “Parti de uma cena do roteiro, em que a personagem é presa em um porão. Eu precisava buscar esse sentimento de prisão”, argumenta. “Queria ver como a Simone reagiria. O ator não imagina que aquele quadrado é o porão, não sabe o que estou fazendo.”

Em tempo: Fátima Toledo não costuma dar os diálogos do roteiro para os atores lerem (em Tropa de Elite, nenhum dos atores recebeu o roteiro com os diálogos. O roteiro com as situações da trama não foi dado a André Ramiro, mas Wagner Moura recebeu. Em O céu de Suely e Cidade Baixa, os atores leram o roteiro, mas sem os diálogos). “Se o ator sabe”, Fátima defende, “ele começa a atuar. Quero que venha à tona a loucura da própria pessoa. É a prisão da própria Simone que vai preencher o filme. Quando o ator olha pra referência de prisão que tem, ele começa a construir. Agora, se você fica dentro do quadrado, sem fazer nada, vendado, tem uma hora que você grita: ‘que porra é essa, me tira daqui, vai tomar no cu!’. Quero que a prisão se torne algo físico.”

O procedimento de não dar o roteiro para os atores é comum nas preparações do diretor britânico Mike Leigh, de Segredos e mentiras (1996). O que difere é que Leigh é o diretor, e é a partir do trabalho com os atores que a trama será construída. Leigh se vale desta interação para erguer não apenas os personagens, mas o filme como um todo. “Mike Leigh nunca escreve uma linha de roteiro”, diz o cineasta e pesquisador Mauro Bapstista, que levou aos palcos A festa de Abigaiu, de Mike Leigh. “Ele seleciona um grupo de atores e tem em mente apenas uma idéia sobre o filme, ou às vezes nem isso. Aluga uma locação por cerca de seis meses, e começa a se reunir separadamente com cada ator, a conversar, a criar os personagens.” Baptista explica que estes personagens tem que ter uma âncora em alguém que o ator conheça. Depois, o ator lê livros que o personagem leria, vê filmes, vai a locações, pesquisa o trabalho do personagem. “Aos poucos, os atores começam a interagir, mas com uma regra: não podem falar para os outros sobre seus personagens”, conta. “Dos outros personagens, os atores vão saber só o que acontece nos ensaios. Aos poucos, Leigh vai criando relações entre os atores, até que depois de um longo processo, de ensaios de dez a doze horas diárias, seleciona algumas cenas e as dispõe em uma ordem. Nunca escreve. Com a dramaturgia fechada, vai filmar em 35mm. Na hora de rodar, não existe improviso, tudo já está decidido. A idéia de personagem é central. O trabalho do ator é duplo, de criação do personagem e de performance.”

Fátima Toledo diz que para cada situação usa uma estratégia. “Às vezes, o ator precisa do meu carinho, daí eu dou minha distância. Às vezes, quer minha distância, dou meu carinho.” Para a atriz Carla Ribas, de Casa de Alice, o caminho foi o da distância. “Eu dizia: ‘como você é chata, você é muito chata, pára de chorar, muito ruim trabalhar com você’.” Fátima acende um cigarro, conta que fazia isso porque Carla precisava entrar no universo de Casa de Alice: “o mundo da periferia, do abandono”. “Quero a pessoa vulnerável”, diz. “Mas não é psicologia. O método é estritamente físico, não quero saber da vida da pessoa.”

O método criado por Fátima Toledo parece ganhar força em um contexto, que para Ilana Feldman, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, “é caracterizado pelo apelo cada vez mais intenso à produção e dramatização da realidade, quando a linguagem desapareceria como construção para surgir confundida com as coisas, quando é o próprio ‘real’ que parece falar”. Feldman lembra que em 2007 os documentários constituíram cerca de metade dos lançamentos de filmes nacionais. E cita os reality shows, como O Aprendiz e Big Brother, as imagens amadoras nos telejornais (como forma de validar a “verdade” da notícia), o cartaz do filme Tropa de Elite que dizia “uma guerra tem muitas versões, esta é a verdadeira”, “além do boom de um certo realismo vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras” (flagras, vídeos no YouTube). Segundo a pesquisadora, a busca é por “um espetáculo que simule sua não-encenação, cujo efeito almejado seria a produção de uma impressão de autenticidade e de um valor de verdade que sejam tomados como inequívocos e inquestionáveis.” O “não atuar”, evocado por Fátima Toledo, contribuiria para essa impressão de autenticidade nos filmes.

O cineasta Karim Aïnouz, que trabalhou com Fátima Toledo em O Céu de Suely e mais recentemente na minissérie para televisão Alice (em parceria com Sergio Machado), pensa que essa busca tem a ver com a teledramaturgia nacional, e com o modelo de interpretação dos atores de televisão. “A novela é tão distante da verdade que, no cinema, os diretores e espectadores acabam tendo uma avidez por experiências físicas reais”, ele diz. “Por isso, o trabalho da Fátima é importante.”

Mas, para Ilana Feldman, também a produção televisiva “tem sabido incorporar e desenvolver os cada vez mais intensos e eficazes efeitos de real”. “Roberto Irineu Marinho disse que a Globo ‘de fábrica de produção de sonhos’, teria passado a ser ‘uma usina de realidades’. É nosso desafio”, comenta a pesquisadora, “problematizar e suspeitar de um certo atual valor de mercado que um tipo de ‘realismo-naturalista’ tem adquirido, suspeitar deste regime cuja principal estratégia é produzir um ‘realismo’ que, inversamente, o ‘desrealiza’ e despolitiza, no momento em que tenta simular um suposto acesso direto à experiência dita real.”

Em uma seqüência de Linha de passe, de Walter Salles, um motoboy em fuga seqüestra um carro, desses grandes, blindados, dirigido por um homem rico, de terno. Ambos estão apavorados por razões distintas. Antes de libertar o homem, o motoboy diz aos gritos para que o seqüestrado olhe para ele. “Olha pra mim, olha pra mim!”, berra o ator.

Os gritos de “olha pra mim” surgiram em um exercício proposto por Fátima Toledo. “É o exercício de ser olhado”, conta. “O Walter transformou em cena.” Segundo ela, “hoje em dia, o espectador está anestesiado, em transe”, e precisa ser acordado. “Os gritos tiram o homem engravatado e o espectador desse transe, dessa anestesia e faz com que olhem para si mesmos.” Walter Salles, que também a contratou para Central do Brasil, considera que um elenco preparado por Fátima Toledo adquire “uma densidade” rara. “Nenhum ator mente. Todos passam a habitar os seus personagens de forma visceral”, afirma. “Ela potencializa o que está no papel. Basta ver os filmes e atores premiados nos últimos anos no Brasil. Fátima está quase sempre por trás deles.”

Em 2010, Fátima Toledo espera se lançar como diretora com um longa cujo título provisório é Sobre a verdade. Verdade, que para Fátima Toledo “não é apenas uma forma de trabalhar, mas de viver”. “É poder dizer ‘eu amo’ sem medo de dizer ‘eu amo’”, afirma. “Muita gente fala: ‘você é uma pessoa intensa’. Não é que eu seja intensa, é que eu vivo na verdade, digo o que tenho que dizer, faço o que tenho que fazer, e a verdade para a maioria das pessoas tem a ver com intensidade.”

Na sexta-feira, último dia do curso, algumas cenas são levantadas. A primeira é de O céu de Suely, com as alunas Angelita, Tatiana e Simone. A segunda é do filme Cidade Baixa. Os alunos Adriano e Itapoã se enfrentam em um braço de ferro. Fátima Toledo tenta trabalhar exercícios de atração e repulsão. No filme, os personagens de Wagner Moura e Lázaro Ramos são amigos, mas brigam e disputam a mesma mulher. Itapoã perde o braço de ferro. Na cena, preparada na sala, nos fundos da casa na Vila Mariana, Adriano está dormindo, tem uma arma (de plástico) embaixo do travesseiro. Itapoã precisa demovê-lo da idéia de matar alguém. Brigam, caem no chão, Itapoã tenta pegar a arma. Adriano se defende. Fátima Toledo grita “corta!”, comenta que Adriano “atuou”, que ainda há um pouco de atuação ali e que isso a afastou dele.

No mesmo dia, uma das alunas, Juliana, não aparece, desistiu do curso. Na véspera, Vilma e ela tentaram apresentar a cena de O céu de Suely em que duas personagens se abraçam e se beijam, na cama. “Travei”, conta a aspirante a atriz, depois, por telefone. “Tentei levar adiante, mas acho que não ficou legal.” Juliana lamenta ter desistido do curso. “Eu devia ter ido no último dia, acabei ficando sem o diploma.”
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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

as montanhas tirolesas me afligem

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"Mesmo permanecendo uma única noite em Chur, um homem pode se arruinar para a vida toda." Ou então: "A viagem de Viena a Linz não passa de uma viagem pelo mau gosto. E de Linz a Salzburgo a situação não é melhor. Além disso, as montanhas tirolesas me afligem." Daria pra colecionar as passagens, de um mau humor muito querido tipo Bernard Shaw ("se mais de 10% da população gostar de um quadro, ele deveria ser queimado. Deve ser muito ruim"), em que o narrador d'O náufrago esmaga e pisoteia a Áustria, a Suíça & tudo que se move por ali, onde o "ar é irrespirável" e "as pessoas insuportáveis". O náufrago, do holandês/austríaco Thomas Bernhard, é a história de dois pianistas que desistem, cada um a sua maneira, de se tornarem virtuoses do piano. Um deles, o narrador, doa seu Steinway e muda-se para Madri, porque, entre outras coisas, chega à conclusão de que não quer passar a vida inteira precisando comprovar seu valor perante um público idiota e que "ser concertista é uma das coisas mais horríveis que se pode imaginar, tocar piano diante de um público é horrível". O outro, Wertheimer, se vê paralisado diante da genialidade de um terceiro pianista, o fabuloso Glenn Gould, um dos principais pianistas do século vinte. Os três se conhecem em um curso do Mozarteum de Salzburgo, durante o pós-guerra. Wertheimer é golpeado mortalmente quando escuta os primeiros acordes das Variações Goldberg, de Bach, tocada por Gould. Esta é a tese do narrador. "Estudamos por uma década inteira um instrumento que escolhemos e então, depois dessa década mais ou menos deprimente e de muito empenho, ouvimos dois ou três compassos de um gênio e estamos acabados". Anos depois, Wertheimer acaba se suicidando, e o narrador vai relacionar o suicídio do amigo ao dia em que, em uma das salas do Mozarteum, Wertheimer foi aniquilado ao ouvir pela primeira vez as Variações Goldberg e perceber que jamais poderia equiparar-se ao gênio Glenn Gould. Não tem muito a ver, mas quando o narrador doa o seu piano à filha de um professor do interior, "um homem bastante primitivo, casado com uma mulher ainda mais primitiva", pensei no meu pai. (Na década de 60, quando abandonou a filosofia -- a Usp ainda na Maria Antonia, todos mortos, lendo Kant -- meu pai doou uma parte da sua biblioteca e deixou a outra parte, uma montanha tirolesa de livros, em um casarão velho que havia comprado perto da serra da Cantareira, onde ninguém da nossa família nunca morou. Até que os livros mofaram, ficaram imprestáveis.) O Steinway do narrador d'O náufrago ficou imprestável: em pouquíssimo tempo, a filha do professor arruinou o piano — "um dos melhores, mais raros, mais procurados e, portanto, mais caros pianos". "Mas o que eu desejara", fala, "havia sido precisamente esse processo de destruição do meu adorado piano." Talvez esteja nisso, nesse dispêndio, uma das principais diferenças entre o narrador e Wertheimer, os dois desistentes. "Hoje ninguém sabe que um dia estudei piano, que freqüentei uma escola superior de música e concluí meu curso, que assim como Wertheimer fui de fato um dos melhores pianistas da Áustria. (...) Eu sempre extraí forças desse ocultamento, que a Wertheimer, no entanto, sempre aborreceu e abateu", diz o narrador. "Eu era muito melhor do que a maioria dos outros estudantes da academia e de um momento para outro parei; isso me fez forte, mais forte do que aqueles que não pararam e que não eram melhores do que eu, que encontraram no diletantismo um refúgio perpétuo, autodenominando-se professores e se deixando cobrir de distinções e condecorações. Todos esses idiotas musicais que concluíram os estudos nas academias e se puseram a atuar como concertistas." O narrador, em uma das passagens mais bonitas do livro, fala de como Wertheimer sempre quis ser Glenn Gould, de como Wertheimer fracassou e naufragou justamente porque julgou-se aniquilado diante da genialidade de Gould, diante de um outro que parecia sempre melhor do que ele. "Ao contrário de Wertheimer, que com certeza teria gostado de ser Glenn Gould, eu jamais quis ser Glenn Gould, sempre quis ser somente eu mesmo; Wertheimer, porém, sempre esteve entre aqueles que a vida toda, até o desespero prolongado, querem ser outra pessoa, mais favorecida pela vida, como querem acreditar. Ele teria gostado de ser Glenn Gould, é provável que também tivesse gostado de ser Gustav Mahler ou Alban Berg. Não era capaz de ver a si próprio como uma pessoa única, como todos fazem e precisam fazer, se não querem para si o desespero; seja a pessoa quem for, ela é única, vivo dizendo a mim mesmo, o que me salva. Wertheimer jamais foi capaz de levar em conta essa âncora salvadora, ou seja, contemplar a si próprio como alguém único; para tanto lhe faltavam todos os requisitos. Todo homem é único e, contemplado em sua individualidade, ele é com efeito a maior obra de arte de todos os tempos — sempre pensei assim, sempre pude fazê-lo. Wertheimer não teve essa possibilidade, por isso sempre quis ser Glenn Gould ou, como disse, Gustav Mahler, Mozart e companhia. Isso o mergulhou desde cedo, e de forma constante, na infelicidade. Não precisamos ser gênios para sermos únicos e reconhecer o que somos. Wertheimer era um competidor incansável; emulava todos quantos julgasse estarem em melhor condição do que ele; embora não dispusesse dos requisitos necessários, como percebo agora, quis de todo modo ser artista e com isso tomou o rumo da catástrofe. Daí, aliás, seu desassossego, seu constante e insistente caminhar, correr, sua incapacidade de ficar em paz."
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